“Neste grande templo abandonado pelos deuses,
todos os meus ídolos têm pés de barro.”
ALBERT CAMUS (Núpcias)
Pergunta-me às vezes o Trêmulo Crente, cheio de pavores e esperanças, qual o resultado da descrença: como é que sente o mundo aquele que fez a fé em pedaços e prosseguiu sua caminhada sobre o pó dos deuses.
Respondo-lhe, silencioso, ao modo zen, apontando o dedo indicador para as flores e as borboletas, sem medo algum de ser piegas. Não prosseguem elas vivas e tão coloridas quanto antes, haja ou não deuses? Por que precisariam ter saído das insondáveis entranhas de um Criador transcendente, que nunca nos mostra sua face, para que sejam belas?
Nada me impede de enxergar encanto e beleza naquilo que um processo natural tão estarrecedor e instigante quanto a Evolução trouxe a este palco-planeta tão pleno de bio-extravagância. A vida não é fenômeno uno: é miríade, caleidoscópio, mais colorida que a mais croática das mandalas. Não é preciso acreditar em Deus para amar-se a Amazônia (e pobres e tristes dos que precisam!).
Acredito, isto sim, na feiúra da covardia e da estreiteza, e suspeito que não é por razão outra que muitas pessoas agarram-se a suas crenças: pelo temor de olhar de frente uma verdade que não foi feita para elas. Uma verdade que não foi confeccionada para o paladar humano. Que não é tão docinha quanto nossos infantis desejos de confeitaria desejariam. Uma verdade que, como o trêmulo Renan um dia suspeitou, pode ser triste.
Pascal, este porta-estandarte do cristianismo inteligente (sim, isto existe, eu concedo!), usou deste tipo de “raciocínio” ao bolar seu argumento da Aposta. Já eu, me recuso a apostar como Pascal: muito interesseiro este procedimento! Crer em Deus só porque isto é vantajoso, conveniente, agradável? Seria indigno da humanidade e da longa marcha rumo à Verdade empreendida por tantos ousados espíritos, através de tantas civilizações, com resultados tão notáveis!
Não, Trêmulos Crentes, que não conseguem pegar no sono de noite sem a chupetinha de uma oração, sem o sonífero de um Pai-Nosso, sem o ursinho-de-pelúcia de um delírio aprazível de paz futura no Éden imaginário, não! Não preciso destas muletas: tenho pernas próprias, fornecidas pela Natureza, e gosto de sentir minha sola em atrito e contato com a grama terrestre.
Como com prazer os frutos da Terra, sem ligar para os macambúzios sacerdotes que me querem convencer da pecaminosidade do gozo, da condenação aos infernos destinada a todos os felizes. Jamais conseguiu a religião me convencer (e olha que tentou!) de que a felicidade é um pecado e de que a única atitude humana digna, neste “vale de lágrimas” onde padeceu o inocente cordeiro de Deus, seja a penitência, o auto-flagelamento, o auto-enterramento na escuridão mofada de um convento.
Nunca aceitei os difamadores dos sentidos e do corpo: que haveria de maligno ou malévolo no deleite tão puro que sentem meus ouvidos ao ouvir uma sonata de Mozart ou uma sinfonia de Schubert? Meus pobres olhos mereceriam acaso ser furados só por que me delicio com os carrosséis coloridos do cinema, só por que minhas retinas às vezes se põem em êxtase diante de uma pintura ou de uma paisagem?
Ah! E o tato! É a condenação deste malquisto sentido que mais absurda me parece. Pobres daqueles que não conhecem as alegrias do tato! Amaldiçoados sejam aqueles que amaldiçoam o beijo, o abraço, a carícia, o enlace amoroso dos corpos, a festa inebriante do sexo! Levem para longe de mim seus espantalhos e suas promessas de danações, padres e moralistas, caceteadores e tiranos, policiais empolados e encouraçados tanques!
Reivindico o meu desejo de gozar em pureza diante das inúmeras lindezas da existência, ainda que eu jamais possa esquecer de todo o mal e toda a feiúra que nela também grassa. Acredito que indignação e admiração possam andar de mãos dadas. Sou um ateu que acredita no politeísmo da beleza e em ídolos que têm todos pés de barro. Tudo que adoro é impermanente como eu mesmo.
Eduardo Carli de Moraes
Publicado em: 18/07/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
that’s my artwork
http://www.gallerymjb.com
next time give me credit if you’re not going to ask permission!
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
velveeta heartbreak
Comentou em 27/03/12